Luiz Costa Pereira Junior
O emprego da
crase costuma desconcertar muita gente. A ponto de ter gerado um balaio de
frases inflamadas ou espirituosas de uma turma renomada. O poeta Ferreira
Gullar, por exemplo, é autor da sentença "A crase não foi feita para
humilhar ninguém", marco da tolerância gramatical ao acento gráfico. O
escritor Moacyr Scliar discorda, em uma deliciosa crônica "Tropeçando
nos acentos", e afirma que a crase foi feita, sim, para humilhar as
pessoas; e o humorista Millôr Fernandes, de forma irônica e jocosa, é
taxativo: "ela não existe no Brasil".
O assunto é tão candente que, em 2005, o deputado João Herrmann Neto, que
morreu em abril deste ano aos 63 anos, propôs abolir esse acento do
português do Brasil por meio do projeto de lei 5.154, pois o considerava
"sinal obsoleto, que o povo já fez morrer". Bombardeado, na ocasião,
por gramáticos e linguistas que o acusavam de querer abolir um fato
sintático como quem revoga a lei da gravidade, Herrmann Neto logo desistiu
do projeto.
O acento grave (`) no a tem duas aplicações distintas, explica Celso
Pedro Luft (1921-1995) no hoje clássico Decifrando a Crase (Globo, 2005:
16):
1) Sinalizar uma fusão (a crase): indica que o a vale por dois (à =
a a): "Dilma Rousseff compareceu às CPIs".
2) Evitar ambiguidade: sinaliza a preposição a em expressões de
circunstância com substantivo feminino singular, indicando que não se deve
confundi-la com o artigo a. "Dilma Rousseff depôs à CPI".
Sem a crase, a frase hipotética se revela ambígua: Dilma destituiu a
comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O
sinal de crase tira a dúvida.
Sinalizar a contração entre vogais idênticas (no caso, a preposição a
e o artigo a) é um desafio que, mesmo quando parece complicado, pode
ser intuído pelo usuário do idioma, em regras relativamente simples de ser
incorporadas.
Ambiguidade
A grande utilidade do acento de crase no a, entretanto, que faz com
que seja descabida a proposta de sua extinção por decreto ou falta de uso,
é a assinalada por Luft: crase é, antes de mais nada, um imperativo de
clareza.
Muitas frases em que a preposição indica uma circunstância (instrumento,
meio etc.), em sequências do tipo "preposição a + substantivo
feminino singular", podem dificultar a interpretação por parte de um
leitor ou ouvinte. Não raro, a ambiguidade se dissolve com a crase - em
outras, só o contexto resolve o impasse.
Exemplos de casos em que a crase retira a dúvida de sentido de uma frase,
lembrados por Luft em Decifrando a Crase:
Cheirar a gasolina (aspirar) x cheirar à gasolina (feder a).
A moça correu as cortinas (percorrer) X A moça correu às
cortinas. (seguiu em direção a).
O homem pinta a máquina (usa pincel nela) X O homem pinta à máquina (usa
uma máquina para pintar).
Referia-se a outra mulher (conversava com ela) X Referia-se à
outra mulher (falava dela).
Contexto
O contexto até se encarregaria, diz o autor, de esclarecer a mensagem em
casos como: "vimos a cidade"; "viemos a cidade".
"conserto a máquina"; "escrevo a máquina". Um usuário
do idioma mais atento intui um acento necessário, garantido pelo contexto
em que a mensagem se insere, se a finada testemunha do exemplo a seguir
destituiu a relatora da OAB ou prestou depoimento:
Morta a testemunha que depôs a relatora da OAB.
Mas, em geral, contextos elípticos ainda deixariam dúvidas em exemplos do
tipo: "Fique a vontade onde está" ou "A sombra das raparigas
em flor".
Cheirar a
gasolina Cheirar
à gasolina
(aspirar o
combustível)
(feder tal qual o combústivel)
"Fique a vontade onde está" indica que uma entidade metafísica
chamada "vontade" deve se manter suspensa ou que o interlocutor
da mensagem deve se sentir confortável?
A falta de clareza, por vezes, ocorre na fala, não tanto na escrita.
Exemplos de dúvida fonética, sugeridos por Francisco Platão Savioli,
professor e coordenador de gramática e texto no Anglo Vestibulares:
- "A noite chegou." Na linguagem falada há ambiguidade; na
escrita, com ou sem o acento, não. Alguém chegou à noite, ao escurecer? Ou
foi a noite que chegou no fim da tarde? Como saber o sentido de uma frase
como essa, sem o acento?
- "Ela cheira a rosa." A afirmação será ambígua, se oral. Se
escrita, terá sentidos diferentes, se houver o acento grave no a que
precede "rosa" ou se ele for dispensado. "Ela cheira a
rosa" significa que a dama aspira o perfume da rosa. Já "ela
cheira à rosa" indica que a princesa tem o perfume da flor. Na
escrita, com a crase, nem é preciso explicar ou entender o contexto.
- "Matar alguém à fome." Sem acento, alguém mata a própria fome.
Com, mata-se alguém pela fome. Como na África ou em ásperas periferias
brasileiras.
Sem o sinal diacrítico, construções como essas serão sempre ambíguas. Nesse
sentido, a crase pode ser antes um problema de leitura do que
prioritariamente de escrita.
Em expressões com
palavras femininas (expressões adverbiais, conjuntivas e prepositivas), há
o acento grave de clareza, utilizado por tradição: "às vezes",
"à moda de", "à espera", "à medida que",
"à custa de", "à prova de" etc.
Embora com expressões adverbiais de instrumento o emprego do acento da
crase seja desaconselhado pelos gramáticos, seu uso é frequente no
português brasileiro, mesmo quando desnecessário: Escrever a máquina, a
mão, a tinta, a caneta (a lápis); ferir a faca (a cacete); calar a bala (a
tiro), matar a baioneta (a punhal). Acentua-se, se houver confusão de
sentido. Alguém matará uma baioneta? Coisa difícil. Quem aplica o sinal
intui um chamado da mensagem ao uso do acento grave de clareza.
"Produzir a máquina" será fabricar a máquina ou produzir com a
máquina? Então: "Produzir à máquina". Por isso, "pintar a
mão" será pintar, desenhar na própria mão, como amantes de tatuagens?
Ou pintar com a mão, sem instrumentos, como fazem alguns sensitivos? Então:
"Pintar à mão".
Mesmo a regra da crase como índice de contração com "distância"
tem sido interpretada pelos usuários do idioma como dependente do contexto.
Pela regra
tradicional, não há acento, se a "distância" estiver
indeterminada:
"Ficar a distância". "Seguiu-a a distância".
"Manteve-se a distância segura". Se a "distância"
estiver definida, determinada numericamente, há acento: "Ficou à
distância de dois metros". "Viu o corpo à distância de
três passos".
Influência
Há, no entanto, autores que sempre acentuam o a dessa locução. Não por
acaso, dicionários como Houaiss incorporam as diferenças de sentido que os
usuários da língua tendem a sentir ao usar a locução.
No sentido de "de longe" e "de um ponto distante",
muitos brasileiros sentem que faz sentido usar crase. Exemplo de Houaiss:
"a sentinela vigia à distância. Entende-se "à distância"
como "localizado a (certa) distância; distante, afastado". No
sentido de "ao longe" e "em um ponto distante" não se
sentiria a necessidade da crase: "viram algo movendo-se a
distância".
O que os usuários intuem do sentido implícito à frase parece influir, por
exemplo, no uso da crase com nome próprio feminino, o que torna o acento
muitas vezes optativo: "Fizeram uma homenagem à Maria" revela
mais intimidade do que "Fizeram uma homenagem a Maria".
Assim também "desenhei a caneta" x "desenhei à caneta";
"a polícia recebeu a bala" x "a polícia recebeu à
bala"; "dar à luz" x "dar a luz".
Chegar a
noite Chegar
à noite
(anoitecer) (chegar
tarde)
Expressões
Em crase, a intuição e a generalização de exemplos concretos podem ser mais
efetivas que a decoreba de regras.
Se intuímos a regra básica de que só se usa crase diante de palavras
femininas quando há uma preposição seguida de um artigo, evitamos
ocorrências como "à 80 km", "à correr" ou "à
Pedro". Afinal, nunca pensamos em crase com palavras masculinas ou
verbos: daí não haver em "a lápis", "a contragosto",
"a custo".
Se lembramos que a crase serve para eliminar uma ambiguidade, também
evitamos tirar a crase em contextos que pedem, por exemplo, "à
beira", "à boca miúda", "à caça". Assim, fica
muito mais fácil pensar a crase. (Colaborou João Jonas Veiga Sobral)
Ensinando a crase
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João Jonas Veiga Sobral
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O
estudo do uso da crase é excelente oportunidade para o professor ou pais
discutirem com seus alunos ou filhos a construção de sentido em um texto,
as variantes linguísticas e a ambiguidade. A seguir, uma sugestão de como
organizar o conhecimento e ensinar um aluno, um filho, um amigo.
Desafios:
- Área do conhecimento: Linguagens e Códigos.
- Objetivo: Refletir sobre regras, variantes e ambiguidades.
- Competências: Reconhecer estruturas e construções de texto, e
posições críticas a usos sociais de linguagens e sistema de comunicação.
Propostas:
- Discutir o uso sintático e estilístico da crase e diferenças entre as
variedades escrita e falada, como estratégia linguística;
- Analisar textos em que a crase seja essencial na construção do sentido
e explicar o conceito de crase como fenômeno fonético.
- Debater com os alunos a posição defendida pelos escritores, pelos
entrevistados, na revista Língua.
Atividade 1: Sondagem
- Propor debate a partir da leitura do texto de Língua, com as
opiniões de escritores e frases em que ocorram empregos obrigatórios,
facultativos e estilísticos da crase.
- Solicitar ao aprendiz que exponha suas dificuldades ou razões que
defendam ou não a extinção desse uso. (É boa oportunidade para discutir o
papel social da linguagem.)
Atividade 2: Aplicação
- Analise frases em que há ambiguidade: "desenhei a caneta" x
"desenhei à caneta"; "compras a vista" x
"compras à vista"; "a polícia recebeu a bala" x
"a polícia recebeu à bala"; "li até a última página"
x "li até à última página"; "bater a porta" x
"bater à porta"; "dar à luz" x "dar a luz".
- Discutir o uso facultativo do artigo feminino em expressões (adjuntos
adverbiais e pronomes possessivos) e o efeito estilístico em cada
situação. Mostre que a crase será usada para resolver a ambiguidade, caso
o contexto não a explicite.
- Analisar empregos da regência dos verbos "chegar" e
"ir": "chegou na escola" x "chegou à
escola"; "foi na padaria" x "foi à padaria".
Discutir a noção de variante linguística e adequação do discurso.
- Diferenciar "Cheguei à moto" de "Cheguei na moto".
Mostrar a diferença de significado na regência. Analisar a canção Você é
Linda, de Caetano Veloso e explicar a diferença de sentido provocado na
regência do verbo: "ir no seu íntimo" x "ir ao seu
íntimo". Caetano faz declaração de amor da regência do verbo.
- Trabalhar Sampa, de Caetano, e mostrar um uso estilístico da crase:
"E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho". Peça que se
passe o período para ordem direta e levante hipóteses para o uso da
crase.
- Solicite que se use, na canção Eu Sei que Vou te Amar, de Vinícius de
Moares e Tom Jobim, o acento grave no verso "A espera de viver ao
lado teu", e que se explique a diferença de sentido provocada.
- Aplique exercícios com base no texto de Josué Machado (no rodapé destas
páginas).
João Jonas Veiga Sobral é professor e tutor
educacional da Escola Móbile.
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A fusão de preposição e artigo
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A
crase indica a fusão de duas vogais iguais numa só. Em particular,
interessa aqui a fusão de um a com outro.
O primeiro a é preposição, palavra que serve para relacionar
duas outras.
O segundo a pode ser o artigo definido feminino a, o pronome feminino a,
ou o a inicial dos demonstrativos aquele, aquela, aquilo, no singular ou
no plural.
A crase em resumo:
1. Preposição a + artigo feminino definido a: É fiel à disciplina
partidária.
2. Preposição a + pronome demonstrativo a (= aquela). A jogada do
deputado é igual à de todos os outros.
3. Preposição a + vogal a inicial dos pronomes aquele(s), aquela(s),
aquilo. Os políticos atribuíram a culpa àquele empresário americano.
A seguir, dicas que facilitam a vida dos usuários do idioma. (Josué
Machado)
Troque por masculino
Ele foi a reunião x Ele foi à reunião? Em caso de dúvida, troca-se a
palavra feminina diante do a por equivalente masculino. Ele foi ao
escritório. Portanto: crase. Sempre que a troca exigir ao.
Há crase ao lado de termos masculinos quando a palavra "moda"
está implícita: Gosta de buchada à FHC.
Troque por outra preposição com artigo
Usar-se crase se o a puder ser substituído por outra preposição com
artigo: "com a", "na" (em a), "para a",
"pela" (por a). Não é preciso que a construção correspondente
seja perfeita:
"Ele foi à CPI?"
(Ele foi para a CPI, na CPI).
"Escaparam à cassação"
(Escaparam da).
"Acostumou-se às exigências"
(Acostumou-se com as).
Àquele, àquilo
Se o período exigir preposição a antes de "aquele",
"aquilo", há crase mesmo com termos masculinos:
"Quero assistir àquele jogo" (a aquele); "Prefiro isto
àquilo" (Preferir uma coisa a outra, "a aquilo").
"Quero ver aquele jogo" (ver aquele).
Com "casa"
Em sentido genérico, de lar, "casa" não vem com a craseado: Ela
fugiu com o padeiro e depois voltou a casa. (Saiu de casa, voltou a
casa.). Há crase se "casa" está determinada (acompanhada de
adjetivo ou pronome): Ela voltou à casa dos pais. (Saiu da casa dos pais,
voltou à casa dos pais.)
Com "terra"
Em sentido genérico, não se usa o acento com a acompanhado da palavra
"terra", em oposição a mar ou a bordo: Os piratas vieram a
terra.
Há crase, no entanto, se houver qualificação ou determinação de terra: Os
piratas chegaram cedo à terra dos severinos.
Com lugares
Veja se o nome do lugar exige artigo (crase) de modo simples:
Volto da Amazônia, portanto, "Vou à Amazônia". Volto de
Santa Catarina, portanto, "Vou a Santa Catarina". Ou use para
em vez de a (à = para a; a = para): Vou para a França, portanto,
"Vou à França". Vou para Roma, portanto, "Vou a
Roma".
Com "uma" e horas determinadas
Neste caso, há sinal de crase:
"Cheguei à uma hora" (a primeira hora após a meia noite ou ao
meio dia). "Abaixo a corrupção - gritaram todos à uma voz".
"Concordaram à uma" (ao mesmo tempo, de uma só vez, de comum
acordo).
Use o acento de crase quando o caso envolver horas determinadas:
"Apaixonou-se à uma hora" ("uma" no caso é numeral)
ou "Morreu de amor às duas horas".
"À vista"
Subentende o sentido de "ao alcance da visão", "na
presença", "diante de", "de repente",
"tornar evidente":
"Barco à vista." "Atacou-a à vista de todos." "À
vista das provas, confessou." "Foi amor à primeira vista."
"O desvio de recursos no mensalão saltou à vista".
À vista/a prazo: O a de "à vista", no comércio, em oposição a
"a prazo", leva acento por tradição. Alguns o explicam assim:
"Compra à vista de dinheiro".
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